11/03/22

Debate sobre perspectiva de gênero e mobilidade urbana reúne especialistas de três países

Encontro reuniu representantes do Brasil, Espanha e Moçambique para discutir desafios, inclusão e equidade na mobilidade urbana

A inclusão e a equidade nas políticas públicas no planejamento da mobilidade urbana nortearam um debate virtual realizado pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP), por meio do Projeto AcessoCidades, em parceria com a Associazione Nazionale Comuni Italiani (Anci/Itália) e a Confederation de Fondos de Cooperación y Solidaridad (Confocos/Espanha), e cofinanciamento da União Europeia, nessa quinta-feira, 10. Com o tema “Gênero e Mobilidade Urbana”, a entidade reuniu especialistas do Brasil, Espanha e Moçambique para discutir desafios e estratégias que insiram mulheres em espaços públicos com mais segurança. Veja aqui.

O encontro foi mediado por Maria Peix, representando a Área Metropolitana de Barcelona (AMB), que questionou qual o modelo de cidade e de metrópole queremos ter. “Precisamos pensar espaços públicos para pessoas e veículos e nas diferentes formas de utilizarmos as cidades, precisamos pensar na cidade do futuro”, disse. “Mas precisamos lembrar que o espaço não é neutro, nem a experiência, nem o uso, nem a construção”, acrescentou.

Segundo Maria, “é necessário compreender como nos deslocamos nas cidades e entender que as mulheres, jovens, homens utilizam as cidades de forma diferentes e têm necessidades diferentes. A partir daí, definir estratégias para garantir direitos de todos que utilizam”.

Estudos apresentados pela AMB mostram que a movimentação de mulheres é diferente nas cidades ao redor do mundo, mas que alguns elementos são universais. “As mulheres usam mais o transporte público, porque culturalmente ainda temos responsabilidade no cuidado com as pessoas. Temos que ir ao mercado, à creche, ao trabalho. Em contrapartida, as mulheres são as que menos têm carteira de habilitação e são menos proprietárias de veículos. Se em uma casa existe somente um carro, quem mais o utiliza são os homens”, afirmou.

Ainda de acordo com Maria Peix, saber a situação socioeconômica, a formação, a idade e as circunstâncias em que mulheres utilizam o transporte e os espaços públicos são fundamentais para que as cidades desenhem políticas públicas mais efetivas. “Muitas vezes o transporte público é pensado por homens para homens, e não para mulheres, que são as maiores usuárias. Uma mulher idosa, por exemplo, tem uma realidade diferente, a que mora na periferia tem outra, a que mora no centro tem outra, e isso tem que ser levado em conta”, reforçou.

“Se não olharmos a mobilidade como mobilidade cotidiana, não estaremos reconhecendo e identificando as necessidades e interesses de todas as pessoas que moram na cidade”, finalizou Peix.

Experiência em Maputo
José Nicols, vereador de Maputo, em Moçambique, participou do debate e relatou algumas dificuldades locais. “Aqui temos apenas 39% das estradas pavimentadas e mais de 450 mil veículos registrados. É um grande desafio. A nossa expectativa é de transformar a utilização de veículos particulares para os de massa, para que as pessoas usem mais o transporte público. Mas temos que pensar em segurança também, especialmente a das mulheres”, observou.

Segundo o vereador, a cidade ainda enfrenta falta de meios para locomoção, superlotação de veículos, longas filas, infraestrutura degrada e exclusão de pessoas com mobilidade reduzida, entre outros. Além disso, ainda há a preocupação com o assédio a mulheres, em especial, no transporte público e a fraca aplicação das leis que protegem essas e as pessoas socialmente discriminadas na estrutura tarifária do transporte.

“Ainda temos ideias ligadas a preconceitos, como homens têm desejo incontrolável, por isso molestam; a mulher não é capaz de dirigir ônibus; as mulheres são assediadas porque querem; mulheres não trabalham na mobilidade porque não estão interessadas; perspectiva de gênero é um absurdo e não tem nada a ver com mobilidade”, listou. Ele confirmou que as mulheres, em Maputo, também são as que mais utilizam meios de locomoção públicos e que relatam insegurança no trajeto. “É preciso conhecer a realidade e perceber como ela muda, por isso pensamos em ações no espaço público, capacitação e diretrizes, elaboração de políticas e conscientização”, completou.

Entre as ações, Maputo criou campanhas contra assédio, mapeando as paradas de ônibus mais perigosas. “Muitas não têm infraestrutura básica para que a mulher possa entrar no banheiro de forma segura, além de não existir polícia nesses lugares”, citou. Para reduzir os riscos, a cidade criou uma equipe intersetorial para fazer análises dessas demandas. A partir disso, foi criado, por exemplo, um acesso mais seguro ao hospital central. “Dessa forma, as mulheres podem encontrar um ambiente mais seguro e adequado”.

Instalação de faixa de segurança perto das escolas, formação e reciclagem de motoristas e inclusão de mulheres nas frotas de ônibus também estão entre as iniciativas realizadas em Maputo. “Trabalhar gênero é complexo, mas é a única maneira de alcançar inclusão. A participação das mulheres nas diferentes fases do projeto favorece o sentimento de pertença e seu desenvolvimento pessoal e coletivo, mas ainda é preciso muito trabalho para alcançar a inclusão no projeto de rotas, órgãos decisórios e fóruns de discussão”, concluiu Nicols.

Dados sobre segurança
No Brasil, 97% das mulheres que utilizam transporte coletivo já relataram ter sofrido algum assédio. O dado alarmante do Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva (2019) foi apresentado pela CEO da startup Nina, Simony César, que comanda uma iniciativa pioneira no país na coleta de dados contra a violência de gênero nos centros urbanos. Simony lamenta que não haja informações oficiais sobre o tema e acredita que a tecnologia Nina pode auxiliar na tomada de decisões pelas autoridades.

“A estimativa é de que, a cada quatro segundos, acontece um assédio dentro do transporte público. Minha mãe foi cobradora de ônibus e passava mais de 12 horas vulnerável dento da frota urbana. Cresci em um dos bairros mais pobres da cidade de Recife/PE e me sentia muito impotente diante da exposição em que ela se encontrava, mas percebi que esse problema não era restrito a mim e a minha mãe”, comentou.

Outro número revelado por Simony é que 65% dos usuários pagantes do transporte são mulheres. “E as mulheres negras ainda têm uma sobrecarga social de atividades, utilizando muito mais o transporte”. A jornada entre homens e mulheres, segundo informações coletadas pela plataforma e por estudos apresentados no encontro, é muito diferente. “Homens vão de casa para o trabalho, enquanto mulheres fazem várias paradas, como casa, creche, mercado, trabalho. Além disso, 70% dos secretários municipais no Brasil são homens. Que cidade queremos se é sempre nessa perspectiva masculina, branca e de elite que as decisões são tomadas”, indagou.

Simony lembrou que a falta de prioridade com o tema ainda é grande, mas que é possível mudar o cenário. “Nosso objetivo é auxiliar na construção de espaços mais seguros e inclusivos para todos, por isso treinamos pessoas e coletamos dados para combater a violência de gênero nos espaços urbanos com grande circulação de pessoas”, finalizou.

AcessoCidades
O “Projeto AcessoCidades: cidades mais acessíveis e conectadas” é coordenado pela FNP, em parceria com a Associazione Nazionale Comuni Italiani (Anci/Itália) e a Confederation de Fondos de Cooperación y Solidaridad (Confocos/Espanha) e cofinanciamento da União Europeia. Essa iniciativa tem o objetivo de qualificar políticas de mobilidade urbana no Brasil, a partir da troca de experiências entre cidades e da capacitação de municípios no uso de dados abertos para o planejamento de transportes. 

Redator: Jalila ArabiEditor: Livia Palmieri
Última modificação em Sexta, 11 de Março de 2022, 13:51
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