Com a urbanização acelerada das últimas décadas, organizações internacionais tradicionais cada vez mais se abrem às cidades, discutindo os desafios futuros com os prefeitos do mundo e construindo metas a serem atingidas também pelos municípios. Esse novo cenário, no entanto, ainda tem a oportunidade de redefinir as tradicionais relações Norte-Sul, solidificadas pelos países, e transformá-las em uma nova governança local-global aos habitantes do Sul.
Principalmente desde os anos 90, as cidades sul-americanas construíram assessorias e estruturas para captarem empréstimos, desenvolverem cooperação técnica e projetarem os prefeitos nas discussões globais. Também surgiram as associações internacionais de cidades, propondo agendas com impacto direto na vida das pessoas.
Essa nova diplomacia, a das cidades, discute e formula políticas de saneamento, do lixo, de transporte, de participação popular, e desenvolvimento econômico local, se diferenciando dos grandes e distantes temas da política das nações, que por muitas vezes se perde em discussões inócuas e tratados não cumpridos, coquetéis e embaixadas grandiosas.
Hoje em dia podemos ver governos locais do Sul muito ativos, como: Montevidéu, Quilmes e Rosario, protagonistas da rede Mercocidades; Canoas, Morón e Maputo, liderando as discussões do Fórum de Autoridades Locais Periféricas; Osasco, Pergamino, e o governo de Minas Gerais, trabalhando pela integração produtiva regional; Santo André, Santos e Sorocaba, referências em Educação; Guarulhos, Vitória, Porto Alegre, Belo Horizonte, que com a Frente Nacional de Prefeitos, cooperam com cidades moçambicanas; ou ainda o Rio de Janeiro, que sediará as Olimpíadas.
Todas essas políticas, todavia, acontecem de maneira espontânea e desarticulada. Apesar de terem sido criados mecanismos institucionais de apoio à internacionalização das cidades no Brasil nos últimos anos, hoje não há nenhuma articulação consistente entre as cidades e a política externa do País. O governo brasileiro perde, assim, a oportunidade de utilizar as políticas urbanas exitosas do País como instrumentos de cooperação internacional.
Em 2003, por exemplo, foram criadas a Assessoria Especial de Assuntos Federativos e Parlamentares do Itamaraty (Afepa); a Subchefia de Assuntos Federativas da Presidência da República (SAF), que tinha entre os seus principais eixos a atuação internacional; e o Ministério das Cidades, com uma assessoria internacional nunca suficientemente fomentada.
No entanto, hoje, a Afepa acaba sendo principalmente um cerimonial internacional nos Estados. A assessoria internacional da SAF, por sua vez, foi uma importante articuladora da internacionalização das cidades até meados do primeiro governo Dilma. Ela, que chegou a promover uma plataforma de cooperação com cidades francesas e lançar editais de cooperação Sul-Sul para cidades – com apoio da Agência Brasileira de Cooperação do Itamaraty – hoje foi rebaixada internamente na sua importância política e potência administrativa.
Outro espaço de articulação das cidades no âmbito regional, criado na estrutura do Mercosul em 2004 – o Fórum Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias, e Departamentos – nunca previu o reconhecimento formal da principal rede de cidades da região (a Mercociudades) e até hoje não conseguiu envolver os estados e províncias de maneira sistemática, sem uma agenda atrativa aos entes federativos e não mobilizando orçamento para as cidades entre os programas regionais.
Financiamento municipal e valorização política
O financiamento para as ações internacionais das cidades e a valorização política dos problemas urbanos e governos locais são os nós górdios que definirão a qualidade, a autonomia e a forma como as cidades do Sul se comportarão no início desse novo milênio.
Em artigo recente na prestigiosa revista Foreign Affairs, o ex-prefeito de Nova York e multimilionário Michael Bloomberg, vê no mundo de hoje o início da era das cidades como principais atores políticos mundiais. Não por acaso, ele é um dos fundadores do C-40, organização que reúne as maiores cidades do mundo para a construção de agendas urbanas comuns (como fez com o tema ambiental na Rio+20).
A União Europeia é outra fonte de apoio da internacionalização das cidades, inclusive em iniciativas de cooperação Sul-Sul. Mesmo com a crise, ela continua a financiar projetos em cidades latino-americanas e africanas.
Pode-se citar também o apoio e interesse do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, além de diversas iniciativas de agências da ONU. O Habitat-ONU, por exemplo, terá em outubro de 2016, na cidade latino-americana de Quito, a sua terceira Conferência das Nações Unidas para Moradia e Desenvolvimento Sustentável, que definirá as novas metas globais a serem adotadas pelos países e cidades do mundo.
Até as mais antigas organizações mundiais de cidades, sediadas na Europa, também reconhecem, fortalecem e dependem dessa agenda do Norte. O mundo “tradicional”, portanto, representado pelos organismos multilaterais, bancos de desenvolvimento, fundações financiadas por grandes investidores do Norte, já reconhecem e prevêem nas cidades o futuro internacional. E grande parte dessa população estará vivendo nas cidades do Sul.
Norte a tomar
Resta às cidades do Sul escolher entre duas opções. A sua primeira é aderir aos movimentos promovidos pelo Norte, reproduzindo a hierarquia Norte-Sul consagrada pelos países, e organizar seus trabalhos rumo ao Habitat-III; ou conformar seus objetivos de acordo com o C-40; ou ainda, mais imediatamente, como forma de se legitimarem internamente, recorrerem às últimas convocatórias de projetos da União Europeia.
A segunda opção é identificar a importância histórica do atual momento. Para isso, os governos locais do Sul devem ser reconhecidos como espaços dos temas e soluções da grande maioria dos povos dos países em desenvolvimento. A diplomacia real e do futuro deverá ser essa, a que resolverá concretamente os problemas do cotidiano, majoritariamente urbanos.
Um bom começo seria a inclusão de projetos específicos para as cidades nos novos fundos do Sul, como Banco dos Brics, Banco do Sul e, regionalmente, o Fonplata e o Focem (Fundo para Convergência Estrutural do Mercosul). Outro primeiro passo simbólico e imediato seria a adoção autônoma de uma agenda concreta de indicadores e metas próprias para as cidades do Mercosul. A 20ª Cúpula das Mercocidades se dará em novembro em São Paulo, uma das maiores cidades do Sul e próxima Secretaria Executiva da rede. Uma esplêndida oportunidade.
A resposta ao rumo a se tomar é soprada pelos ventos platinos que inspiram o artista uruguaio Joaquín Torres García, ao virar o continente para o nosso lado, com o Sul para cima. Segundo ele, “... na realidade nosso norte é o sul. Não deve haver norte para nós, senão por oposição a nosso Sul. Essa retificação era necessária; por isso agora sabemos onde estamos”.
*Fernando Santomauro é doutor em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), Coordenador de Relações Internacionais da Prefeitura de Guarulhos e membro do GR-RI.