O fato de pessoas de menor renda usarem veículos privados para deslocamentos diários não significa uma sociedade mais avançada
A interrupção da distribuição de combustíveis em maio de 2018 devido à greve dos caminhoneiros, em poucos dias, provocou o colapso produtivo de vários setores, impactou o transporte urbano e interurbano e o fornecimento de alimentos. Um país que para devido à falta de combustíveis fósseis é um país pouco resiliente. No afã de estancar a paralisação, entre outras medidas, o governo optou por renúncias fiscais para reduzir o preço do óleo diesel. Compensar os R$ 0,46 no preço do litro é, agora, uma dívida a ser paga por toda a sociedade brasileira.
Com impacto estimado em bilhões nas contas públicas, a questão levanta uma oportunidade para discutir a supremacia do individual sobre o coletivo. Enquanto o diesel, goste-se ou não, é o combustível que movimenta parcela significativa de produtos de consumo direto da população e responde pela quase totalidade do transporte coletivo urbano (via ônibus), a gasolina é majoritariamente utilizada para abastecer veículos de uso privado. Claro que ainda temos muitas ações necessárias para reduzir os impactos ambientais, como a aplicação de norma regulamentadora para motores a diesel, já adotada em vários países, que prevê redução no nível de poluentes em relação ao atual. Mas, considerando o coletivo, não seria o caso da gasolina ajudar a pagar o diesel?
A situação da greve forçou os brasileiros a experimentarem uma vida menos dependente dos combustíveis fósseis. As cidades amanheceram com poucos carros e motocicletas nas ruas. A bicicleta, que era uma alternativa distante para muitos, saiu do armário. Muitos caminharam ao trabalho e às escolas. O resultado em São Paulo, por exemplo, foi imediato: a poluição atmosférica caiu pela metade, segundo a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo).
Ao optar pelo carro em vez do ônibus, uma pessoa contribui com 45 vezes mais emissões de dióxido de carbono na atmosfera (gás que contribui para o aquecimento do planeta) e 30 vezes mais de monóxido de carbono (gás tóxico e poluente). Sem contar o aumento de uma vez e meia de óxido de nitrogênio e o triplo de material particulado, que afetam os pulmões e provocam danos à saúde. O cálculo foi feito com base nos fatores do Inventário Nacional de Emissões Atmosféricas por Veículos Automotores Rodoviários do Ministério do Meio Ambiente considerando ônibus urbanos com média de ocupação de 80 pessoas e carros com média de 1,5.
É possível que nem todos carros e motos que ficaram sem combustível precisem estar nas ruas diariamente, como de costume. Quem insiste em realizar deslocamentos por transporte individual deveria ajudar a pagar a conta do coletivo. No Brasil, a estatística assusta. Entre 2001 e 2016, a frota de veículos aumentou 194,1%, com destaque para o crescimento das motocicletas (420,2%) e dos automóveis (141,6%). Na comparação, a frota de ônibus (119,5%) e caminhões (84,3%) cresceu menos.
A migração de veículos privados com motor a combustão para o transporte coletivo e o não motorizado (bicicletas e a pé) traz benefícios para a saúde pública (menos mortes e lesões no trânsito e menos internações ou mortes por poluição do ar), para o clima do planeta e reduz o tempo e o dinheiro perdidos em congestionamentos. De acordo com o Observatório do Clima, motos e carros respondem por 78% das emissões de GEE (gases de efeito estufa) no transporte rodoviário de passageiros no país, enquanto os ônibus urbanos representam 16%. Portanto, o preço da gasolina deveria ser usado como um instrumento de aceleração da transferência modal e da transição para veículos de zero ou baixa emissão de GEE. Como resultado secundário, os que insistissem na escolha por veículos motorizados individuais poderiam migrar para o etanol, uma opção mais sustentável, ou pressionar a indústria pela eletrificação.
O fato de pessoas de menor renda usarem veículos privados para deslocamentos diários não significa uma sociedade mais avançada, já que em cidades de países tidos como desenvolvidos os mais ricos também usam o transporte coletivo. O que faz Ingvar Kamprad, fundador da Ikea, considerado o segundo homem mais rico da Europa, usar ônibus para ir ao escritório na Suécia? Ou o ex-prefeito Michael Bloomberg ser visto frequentemente no metrô de Nova York? Certamente o ganho de tempo resultante de um transporte coletivo eficiente e seguro, parte de uma rede intermodal integrada.
Hoje, aumentos no preço da gasolina, contrabalançando menores acréscimos no preço do diesel, seriam uma forma de compensar a sociedade brasileira pelas decisões de caráter individual na hora de escolher o modo de transporte, privilegiando-se o transporte público. Os preços relativos do diesel e da gasolina podem ser ajustados de forma a desincentivar o uso de carros e motos, como já foram no passado brasileiro, em vez de afastar usuários do transporte coletivo sobre pneus. Essa alternativa merece apoio governamental, tanto nesse momento de alta do diesel como na transição para um transporte coletivo urbano de zero ou baixa emissão, o que inclui a redução de impostos sobre veículos mais sustentáveis.
A dependência de combustíveis fósseis demonstra que ainda temos uma raiz no passado. O Brasil - um país majoritariamente urbano - precisa recuperar o atraso na oferta de opções mais sustentáveis de transporte de carga, como a ferroviária, fluvial e cabotagem, com incentivos a tecnologias mais limpas para a logística regional e urbana. A viabilização de um transporte diversificado e de zero ou baixa emissão reduziria a chance de colapsos como o que vivenciamos, pois proporcionaria outras formas de deslocamento mais sustentáveis e menos dependentes de uma única fonte energética.
Rachel Biderman é diretora executiva do WRI Brasil
Luis Antonio Lindau é diretor do programa de Cidades do WRI Brasil
Artigo originalmente publicado em www.nexojornal.com.br