Absolvido na Justiça, antes fui execrado como fraudador
Sergio Avelleda
Imagine se os acionistas de uma empresa privada de alta complexidade, preocupados com custos, desperdícios ou mesmo ilegalidades, baixassem a seguinte diretriz: quem tomar uma decisão que um fiscal externo considere equivocada responderá com o seu patrimônio pessoal pelos custos adicionais e multas, perderá o emprego, ficando impossibilitado de atuar no mercado de trabalho, e ainda será exposto publicamente como desonesto.
Essa ficção, claro, nada tem a ver com empresas bem geridas, nas quais os executivos são estimulados a inovar e a tomar riscos com prudência. Os erros são admitidos como possíveis, sempre com a presunção de boa-fé —até prova robusta em contrário.
As divergências de prioridades administrativas não são consideradas erros execráveis. Essa, entretanto, é a realidade na administração pública, na qual o risco de decidir está insuportável, levando a mais completa paralisia os gestores probos e que prezam sua dignidade.
Tomar decisões é realizar escolhas entre alternativas possíveis, vencer dilemas. Na administração pública, possível é o que seja legal e eficiente. O problema é que esses conceitos são quase sempre sujeitos a interpretações. Escolher uma vai contrariar as interpretações diversas, o que não deveria ser considerado uma desonestidade.
O regime de responsabilização dos administradores públicos é regido, principalmente, pela Lei de Improbidade Administrativa, um avanço no sistema de controle dos atos públicos. A interpretação corrente dessa lei, no entanto, tem tido dois efeitos nefastos: 1 - considera ato de improbidade, até prova em contrário a ser produzida em processos que duram muitos anos, todos os atos de gestão de que o Ministério Público discorde; 2 - em consequência, tem afastado da administração pública todo aquele que não queira se sujeitar ao sério risco da execração.
O próprio nome da lei demonstra que a intenção do legislador era a necessária repressão da desonestidade, sinônimo de improbidade. Tratar como falta de honestidade as divergências de opinião quanto às prioridades de gestão, ou mesmo os erros técnicos, contraria o propósito da lei, paralisa e engessa a administração pública e afasta talentos que não aceitem correr graves riscos.
A isso se acresce o nefasto costume de paralisar toda obra que sobre a qual exista suspeita de improbidade. Há casos em que a paralisação é necessária, há outros em que fazê-lo só multiplica os prejuízos do Estado.
O Tribunal de Justiça de São Paulo acaba de me absolver por unanimidade de uma condenação superior a R$ 1 bilhão, além da perda de direitos políticos e de não poder exercer função pública por cinco anos.
E qual era acusação? Corrupção, enriquecimento ilícito? Nada disso. Eu, como então presidente do Metrô de São Paulo, e a diretoria da empresa não seguimos a recomendação de um promotor para suspender as obras da linha 5-Lilás.
Hoje, milhares usam a linha todos os dias. As empresas acusadas de formação de cartel, do qual não participei nem fui acusado de participar, estão condenadas a pagar indenização ao Metrô. Por oito anos fui execrado na TV como se estivesse envolvido em uma fraude milionária. Meus filhos passaram uma vergonha que não mereciam. Perdi o emprego, tive que trabalhar fora do Brasil.
Das minhas feridas, cuidarei eu. Mas o país precisa encontrar um sistema em que a busca por eficiência na administração pública não implique o risco de ser rotulado como bandido.
Sergio Avelleda = Advogado, ex-secretario de Mobilidade e Transportes da Prefeitura de São Paulo (gestões Doria/Covas) , ex-presidente do Metrô (gestões Serra e Alckmin) e ex-presidente da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos; gestão Alckmin)
Originalmente publicado na Folha de S. Paulo, dia 01/11/2019.