Discutir o 'sistema complexo' é erro de perspectiva
*Geraldo Julio
Qual o principal problema do Brasil hoje? Podemos ter respostas diferentes, dependendo do ponto de vista de quem responder, mas se estivermos falando em relação à qualidade de vida dos brasileiros e ao crescimento sustentável da economia do país, a resposta será sempre a mesma: desigualdade.
Quando se fala em super-ricos, geralmente as pessoas acabam associando a xeiques árabes ou a bilionários norte-americanos, seguindo o senso comum. Porém, a realidade é que não são eles os que mais concentram recursos. A comparação global mostra que está no Brasil a maior concentração de riquezas nas mãos da menor quantidade de pessoas. O número de estatísticas publicadas é grande e nunca vi alguém combater essa informação. É isso aí: o Brasil é o país mais desigual do planeta.
Mesmo diante dessas constatações, tenho acompanhado o debate sobre reforma tributária. O que mais se diz é que o maior problema a ser enfrentado é a “complexidade do sistema”. Epa! Aqui podemos estar diante de um problema sério de perspectiva. É como se os passageiros e a tripulação de um avião em queda estivessem mais preocupados com a possibilidade de hipertensão causada pela quantidade de sal do biscoitinho servido no voo do que com o desastre iminente porque as turbinas pararam de funcionar.
Um sistema tributário justo deve arrecadar mais de quem pode pagar mais e garantir investimento público e prestação de serviços de qualidade para aqueles que têm menos. Você pode até escrever isso melhor que eu, mas todos sabem que o sistema tributário deve reduzir a desigualdade e fazer a economia crescer de maneira sustentável e com justiça social. Difícil é acreditar que empobrecer ainda mais os pobres traga benefícios para o país. Infelizmente, é isso que as propostas de reforma tributária que estão em discussão fazem. Empobrecem os pobres.
O Brasil é o país que mais tributa o consumo. Ou seja, o trabalhador brasileiro que ganha R$ 1.000 e, naturalmente, gasta tudo durante o mês, é o que menos compra com esse dinheiro. Se morasse em qualquer outro lugar do mundo, compraria mais bens e serviços com o mesmo valor, em função da carga tributária.
O Brasil é também o que menos cobra impostos sobre renda e patrimônio. Ou seja, os super-ricos do Brasil —vamos chamar assim apenas os que ganham mais de R$ 360 mil por mês—, são os que menos pagam impostos no mundo. Só para ilustrar, observem que eles ganham, em um único mês, o que os outros que mencionei recebem em quase 30 anos de trabalho. Não estou dizendo que não o merecem, estou apenas dizendo que a economia não se sustenta se eles não pagarem impostos nos patamares que se paga em todos os outros países.
Se continuar assim, mesmo que ocorra a “simplificação do sistema”, estaremos construindo um país melhor? Certamente não. O sistema tributário vai continuar contribuindo para o aumento da desigualdade. O avião continuará sua queda, mesmo que o biscoitinho, agora sem sal, não cause mais a hipertensão.
O que fazer, então? Normalmente acusam a oposição de “não apresentar um projeto para o país” . Vamos lá. Falta pouco espaço neste artigo, mas dá para dizer: reduzir a carga tributária sobre consumo e aumentar sobre renda e patrimônio. Pronto!
Reduzir os impostos sobre o consumo permite àquele trabalhador que mencionei acima comprar mais arroz, feijão, farinha, ovos, gás, roupas, passagens no transporte público e consumir mais energia e água com os mesmos R$ 1.000 que ganha hoje. Isso reduz a desigualdade.
Aumentar os tributos sobre a renda dos super-ricos faz o Brasil sair do topo mundial de concentração de renda e permite ao Estado investir mais em infraestrutura e serviços públicos. Isso também reduz a desigualdade.
Aliás, se os pobres (a grande maioria da população) comprarem mais bens e serviços e se o Estado investir mais, as empresas também vão vender mais. Eureca! A economia cresce de forma sustentável! As turbinas voltam a funcionar, e o avião retoma o voo de cruzeiro. Não era isso que queríamos?
Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, em 16 de outubro.
*Geral Julio é prefeito de Recife/PE e secretário-geral da FNP