29/01/20

Até quando vamos precisar lembrar dos efeitos das “águas de março”

Nos últimos anos o curso das mudanças climáticas tem aumentado em frequência e intensidade as outrora “chuvas de março”, ocorrendo com mais frequência ao longo do ano, trazendo custos econômicos e sociais como alagamentos, deslizamentos de terras e encostas, engarrafamentos, perdas de equipamentos, mobiliário, moradias e – seu mais alto custo – de vidas humanas. Trata-se de acontecimentos tão recorrentes que as redações dos jornais se preparam para o “evento” anual com pautas prontas, como acontece na cobertura do carnaval ou férias escolares. Os mais atingidos pela mudança de padrão das chuvas brasileiras são os habitantes das grandes e médias cidades, geralmente frutos de um processo de urbanização desenfreada característico da segunda metade do século XX.

Segundo dados do IBGE a população brasileira que vive em cidades passou de 36,16% na década de 1950, para 84,36% na década de 2010. A despeito de campanhas para conscientização e mudança de comportamento, como por exemplo a de não se jogar lixo nas ruas para evitar o entupimento de bueiros e de iniciativas de planejamento urbano mais eficientes que possam minimizar o efeito das chuvas, no caso brasileiro, quase sempre, serão necessárias grandes intervenções de drenagem, especialmente galerias, piscinões e/ou recuperação dos leitos naturais dos cursos d’águas. Na economia, esse tipo de intervenção pode ser classificado como um bem público tradicional: indivisível, não rival e que satisfaz uma necessidade coletiva. Utilizaremos como exemplo Teresina, capital do Piauí. No plano de saneamento básico da cidade consta a estimativa, conservadora, de serem necessários pelo menos R$ 3 bilhões para solucionar o manejo de águas pluviais.

Para se ter ideia da capacidade de investimento de uma municipalidade, Teresina – que possui o terceiro maior investimento per capita entre as capitais brasileiras – investiu em média um total de R$ 60 milhões provenientes de recursos próprios nos últimos anos (incluídos aí todos os investimentos e os custos de manutenção da infraestrutura existente em educação, saúde, pavimentação, esporte, cultura, etc).

Dito de outra forma: só com fontes externas de financiamento é possível resolver o problema de drenagem da cidade. Nos últimos dez anos, a capital piauiense conseguiu assegurar cerca de R$ 200 milhões de recursos do Orçamento Geral da União para intervenções de drenagem. Não é preciso ser um gênio da matemática para perceber que, mantidos os recursos disponíveis para o setor, serão necessárias várias gerações para solucionar esse problema. E trata-se de apenas um dos desafios que várias cidades estão enfrentando na busca por financiamento para obras de atendimento a necessidades básicas da população.

De fato, os investimentos públicos têm diminuído consideravelmente. Desde 2015 o investimento líquido brasileiro é negativo, ou seja, o que os Governos gastam com despesa de capital não é suficiente nem para manutenção da infraestrutura existente. Estudo recente do IBGE, referentes a 2017, apontam diminuição de 13,7% no investimento público total brasileiro, parte da queda sendo atribuída à redução de 40% nos investimentos municipais. Para 2020 a perspectiva não é promissora. O aumento de 12% no piso salarial dos professores – a despeito da legitimidade e necessidade da valorização dos profissionais da educação – implicará, segundo os cálculos na Confederação Nacional dos Municípios, em aumento de despesa de pessoal em R$ 8,7 bilhões no total das finanças municipais brasileiras.

Ajuste de eventos externos tradicionalmente são feitos nas despesas discricionárias, em especial nos investimentos. Para efeito de comparação, o estudo MultiCidades aponta que, em 2018, os municípios brasileiros investiram o total de R$ 38 bilhões, incluindo recursos de transferência e de operações de crédito. Uma opção de financiamento para o manejo de águas pluviais seria o estabelecimento de parcerias público privadas (PPPs) de sistema de drenagem, ainda inéditas no Brasil. Estudos e projetos pilotos devem ser implementados nos próximos anos para testar essa forma de financiamento, sendo necessárias alterações legislativas para que esses projetos cheguem ao estágio em que se encontra, por exemplo, a Iluminação Pública, com fontes definidas e claras de financiamento.

É notório e quase consensual que 2020 será um ano com um crescimento do PIB brasileiro, e que – ainda que modesto – o aumento dar-se-á sobretudo por conta do consumo e investimentos do setor privado, algo bastante saudável para o desenvolvimento de longo prazo. Entretanto, é importante ressaltar que pouco adiantará o seu Álvaro, dono da padaria, investir em maquinário e reformar o seu espaço para oferecer mais conforto ao cliente, aumentando o valor agregado do seu produto, se em 2021 sua clientela não conseguir chegar ao estabelecimento por conta de alagamentos causados por chuvas ordinárias ou – mais grave – se em uma tempestade mais intensa seu estabelecimento for alagado e todos os investimentos perdidos.

Ou, ainda, na pior das hipóteses, seu funcionário, que ganha um salário mínimo e mora em uma área de risco na periferia, perder a moradia e talvez a vida de algum familiar. Governos Federais e Estaduais, que concentram parte importante de recursos arrecadados, devem priorizar a questão da drenagem urbana para que o poder público não tenha que dar a mesma justificativa para a população todos os anos: existem projetos, mas não existem recursos. Uma vez obtidos esses recursos, as complexas intervenções urbanas que a solução para o problema implica (bloqueio de vias de trânsito movimentadas, desapropriações e/ou aquisições de terras) geralmente levam mais de 3 anos para ficarem concluídas. A resiliência urbana às mudanças climáticas não deve ser um assunto que dure para sempre. Eternas deveriam ser apenas as artes, como as boas músicas da nossa cultura popular.

Erick Elysio Reis Amorim - economista e mestre em economia do setor público pela UnB. É diretor de Assuntos Federativos e Internacionais da prefeitura de Teresina.

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