18/06/20

Nova mobilidade urbana

Inação pode agravar o fechamento de empresas de transporte coletivo, comprometendo o acesso das periferias à cidade

 

Luis Lindau e Sergio Avelleda

Sapatos do lado de fora de casa e máscaras no transporte público não podem ser os únicos legados da pandemia da covid-19 para a mobilidade urbana. Tampouco o renascimento do carro e a explosão da moto como solução para os deslocamentos. As últimas décadas foram de árduas batalhas para que o transporte coletivo recuperasse alguma prioridade e ciclistas e pedestres começassem a ser atendidos da maneira que merecem. Como ficariam as cidades caso aproveitassem essa crise para criar um ciclo virtuoso para a mobilidade urbana?

Está cada vez mais claro que o ciclo teria três fases. A primeira marcada por medidas associadas ao isolamento social, em que a demanda pelo transporte coletivo cai em até três quartos enquanto a oferta é reduzida a apenas um terço para evitar lotação. Linhas de ônibus são cortadas, outras temporariamente paralisadas e o acesso das pessoas à cidade que permanece aberta é comprometido. Com a queda na arrecadação, entidades e operadores de transporte urbano pressionam governos locais e federais na busca de recursos para evitar o colapso. Há menos veículos nas ruas, diminuem acidentes e congestionamentos, e a qualidade do ar melhora muito. Isso já estamos percebendo.

Para dar início a uma transformação positiva, as cidades ampliam os espaços para pedestres e ciclistas, com calçadas alargadas e ciclovias estendidas de forma a conectar com trechos existentes, terminais de ônibus, metrôs, barcas e trens, formando uma rede. Crescem as oportunidades de estacionamento seguro para bicicletas. A retomada de parte da área destinada aos veículos atende o novo normal do distanciamento social, que inclui deslocamentos mais curtos para os serviços essenciais, filas espaçadas para entrar em lojas, mesas externas para clientes de bares e restaurantes ou para a logística de entrega de produtos encomendados online.

A disseminação de faixas exclusivas tira o ônibus do congestionamento e beneficia quem dele depende. Essa primeira fase é marcada por intervenções temporárias, rápidas e de baixo custo, muitos balizadores, pincéis e galões de tinta, atividades que oferecem oportunidades de novas vagas de trabalho.

Uma nova dinâmica gradualmente se estabelece, a partir da consolidação do trabalho remoto e do ensino à distância. As atividades têm horários distintos de funcionamento e muitas isenções do transporte coletivo não são mais permitidas nos horários de maior demanda. Com tarifas diferenciadas ao longo do dia, as tradicionais curvas de pico da manhã e da tarde são achatadas, o que possibilita uma economia significativa nos custos.

Cumprida a primeira fase, a segunda se caracteriza pela valorização dos espaços públicos livres de aglomeração. As pessoas percebem os benefícios para a saúde física e mental de caminhar e pedalar em deslocamentos curtos antes feitos em carros. As externalidades negativas dos carros ficam mais evidentes do que nunca, tanto pela poluição quanto pelo risco que apresentam às pessoas agora acostumadas a ruas menos movimentadas. Assim, o acesso de veículos movidos a derivados de petróleo a algumas zonas das cidades passa a ser taxado.

Cobrar o estacionamento de longa permanência em vias públicas e IPTU diferenciado para prédios garagens se torna prática comum. Toda essa arrecadação é canalizada para subsidiar e qualificar o transporte coletivo. Com ruas mais estreitas, as velocidades reduzem, assim como as mortes no trânsito. O transporte coletivo usufrui das faixas exclusivas para vencer os congestionamentos. Com viagens mais diretas e rápidas, atrai novos clientes que chegam aos terminais pedalando.

A terceira fase é a da consolidação da nova mobilidade em um patamar muito mais equânime e sustentável. As intervenções temporárias de sucesso, inicialmente sinalizadas por pinturas e balizadores, passam a ser definitivas. Quando remodeladas, as vias proporcionam segurança e conforto a todas as pessoas, dos 95 centímetros de altura aos 95 anos de idade. Esse novo conceito de distribuição do espaço para pedestres e ciclistas reforça negócios de pequenos comerciantes de bairro, mercados e feiras de rua, promovendo novas centralidades urbanas. Também traz benefícios à mobilidade urbana, pois a geração de empregos e a oferta de serviços mais bem distribuídos na cidade evitam os deslocamentos pendulares.

Os recursos angariados com a cobrança das externalidades negativas dos carros somam-se aos obtidos por uma taxa de mobilidade que reforça o vale-transporte. A contribuição patronal, que antes atingia apenas salários mais baixos, passa a incidir sobre um universo maior de colaboradores. Novas fontes de recursos possibilitam grandes avanços na modernização do transporte coletivo. Cresce o uso de dados digitais para planejar e gerenciar, disparando a oferta de serviços dinâmicos com rotas, veículos e frequências ajustados às demandas dos clientes.

A mobilidade passa a ser entendida como um serviço customizado e prestado de forma integrada por operadores não só de ônibus ou trens, mas multimodais. O transporte é finalmente integrado, com meios de pagamento unificados e geridos de maneira coordenada por governos locais e regionais, com apoio federal. É o fim da sobreposição de linhas e da competição entre o transporte coletivo urbano e o metropolitano, com substanciais reduções nos custos. Frotas de ônibus híbridos e elétricos ganham escala nacional.

Esse ciclo virtuoso precisa começar em um ano eleitoral agravado pela crise da pandemia. Não é pouca coisa, mas a inação pode agravar o fechamento de empresas de transporte coletivo, comprometendo o acesso das periferias à cidade a partir do corte e encerramento de linhas. No vácuo causado pelo fim do serviço regulado, multiplicam-se mototáxis e vans informais, cresce a circulação de carros e principalmente motocicletas, com maior poluição do ar, mais mortos no trânsito e níveis de congestionamento até então desconhecidos. Postergar a tomada de decisão trará grandes prejuízos econômicos, sociais e ambientais. O momento de decidir qual caminho seguir é agora.

Luis Antonio Lindau é diretor do programa de Cidades do WRI Brasil. Sergio Avelleda é diretor de Mobilidade Urbana do WRI Ross Center for Sustainable Cities

 

*Artigo originalmente  publicado no jornal Valor Econômico de 16 de junho de 2020.

Última modificação em Quinta, 18 de Junho de 2020, 11:16
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